Umumbigo


como uma alga
Julho 24, 2011, 3:40 pm
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“Em 1920, nasceu Hans Reiter. Não parecia um menino, mas sim uma alga. Canetti e creio que Borges também, dois homens tão diferentes, disseram que assim como o mar era o símbolo ou o espelho dos ingleses, a floresta era a metáfora onde viviam os alemães. Hans Reiter ficou fora dessa regra desde o momento em que nasceu. Não gostava da terra e menos ainda das florestas. Também não gostava do mar ou o que o comum dos mortais chama mar e que na realidade só é a superfície do mar, as ondas eriçadas pelo vento que pouco a pouco se foram convertendo na metáfora da derrota e da loucura. Do que ele gostava era do fundo do mar, essa outra terra, cheia de planícies que não eram planícies e vales que não eram vales e precipícios que não eram precipícios.
Quando a zarolha lhe dava banho numa selha, o menino Hans Reiter deslizava sempre das suas mãos ensaboadas e descia até ao fundo, com os olhos abertos, e se as mãos da mãe não o voltassem a puxar até à superfície ele teria ficado ali, a contemplar a madeira escura e a água escura onde flutuavam partículas da sua própria sujidade, bocadinhos ínfimos de pele que navegavam como submarinos para algum lado, uma enseada do tamanho de um olho, um ancoradouro escuro e sereno, embora a serenidade não existisse, só existia o movimento que é a máscara de muitas coisas, incluindo a serenidade.
Uma vez o coxo, que às vezes observava a forma como a zarolha lhe dava banho, disse-lhe que não o puxasse, para ver o que ele fazia. Do fundo da selha, os olhos cinzentos de Hans Reiter contemplaram o olho celeste da mãe e depois pôs-se de lado e entreteve-se a contemplar, muito quieto, os fragmentos do seu corpo que se afastavam em todas as direcções, como naves sondas lançadas às cegas através do Universo. Quando o ar se acabou deixou de contemplar aquelas partículas ínfimas que se perdiam e começou a segui-las. Ficou vermelho e apercebeu-se de que estava a atravessar uma zona muito parecida com o Inferno. Mas não abriu a boca nem fez o mais pequeno gesto de subir, embora a sua cabeça só estivesse a dez centímetros da superfície e dos mares de oxigénio. Por fim, os braços da mãe levantaram-no no ar e ele pôs-se a chorar. O coxo, embrulhado no seu velho capote militar, olhou para o chão e lançou uma cuspidela para o meio da lareira.
(…)
Quando Hans Reiter viu pela primeira vez uma floresta de algas emocionou-se tanto que se pôs a chorar debaixo de água.”
2666, Roberto Bolaño