Filed under: crónica
Tenho a maior sorte em ter duas amigas de infância. Não é preciso escrever que nos acompanhamos desde sempre e que continuará a ser assim – somos amigas de infância.
Cresci com a Joana e a Filipa. Fizemos brincadeiras de recreio, vestimos roupas muito duvidosas, vimos as primeiras vezes em que cada uma se maquilhou, trocámos muitos papéis com mensagens nas aulas, sentimos juntas a emoção das primeiras saídas à noite, mergulhámos sincronizadas no mar. Rimos às gargalhadas e amuámos e rimos outra vez. Também andámos de patins nas aulas de Educação Física e tenho quase a certeza de que seria eu quem tinha menos perícia.
Com o tempo, cada uma foi conhecer um bocadinho mais de mundo: Coimbra, Madrid, Bolonha, Oulu, Bruxelas, Maputo, Londres. Sempre que pudemos, visitámo-nos e ficámos muito orgulhosas ao ver a amiga de sempre ser a melhor guia do mundo num lugar longe de casa.
Gostamos muito de voltar a casa. A nossa casa pode ser uma esplanada em Espinho, onde fomos crianças e adolescentes, ou qualquer lugar onde estejamos as três. A casa é, na realidade, a possibilidade de estarmos no mesmo espaço a reviver muitas histórias e a construirmos muitas mais. Como o Porto repleto de martelos, manjerico e bailaricos, há poucos dias, quando a Filipa veio numa visita relâmpago, e foi tão bom. Foi também Marraquexe, em abril, quando quis todos os dias abraçá-las infinitamente por estarmos ali, juntas, numa viagem surpresa tão bonita. Houve tempo para vermos os encantadores de serpentes na Praça Jemaa el-Fna e para admirar as mesquitas. Também para nos encantarmos no Jardin Majorelle, relaxarmos num hammam e subirmos a montanha do Atlas, ou olharmos a mulher que no meio da confusão pegou na mão da Joana para desenhar a henna, e depois na nossa. Foi uma henna muito amadora e com uma cor diferente de todas as que vimos, como nos lembrará daqui a algum tempo a fotografia que tirámos. Tenho a certeza de que nos vamos rir, meter as mãos à cabeça, e perguntar uma vez mais: que tinta seria aquela?
Em tempos, aproveitei uma promoção de impressão de fotografias e mandei imprimir muitas mais do que as que consegui colocar em álbuns. Ontem encontrei a caixa onde guardo todas estas fotografias. Encontrei tantas com a Filipa e a Joana. Na primeira que vi estamos de gorro e luvas, seguida por uma em que estamos muito morenas, muito felizes, e com os cabelos cheios de sol. Em breve estará aqui a foto das nossas hennas e das ruas de Marrocos tão vivas de tecidos coloridos e especiarias.
No aeroporto de Marraquexe, entrámos em aviões diferentes. E de repente a vida acontece num piscar de olhos, passam-se alguns meses, e reencontramo-nos como se nos tivéssemos separado há cinco minutos. É o maior cliché dos melhores amigos e continua a ser a maior verdade.
Quando nos encontrarmos outra vez vai ser a festa de sempre, imagino até que muito maior, sabendo que temos esta sorte de sermos amigas de infância.
Filed under: citações
“A dignidade de movimento de um iceberg deve-se ao facto de este ter apenas 1/8 do seu volume acima do nível da água.”
Ernest Hemingway
Filed under: poesia
Penso até ao último segundo
que vou perder o avião
o carro despistar-se-á
adormecerei, claro
não ouvirei a chamada
estarei na porta errada
não aceitarão a minha bagagem,
qualquer coisa imprevisível
e terrível e não podem
esperar por mim.
Entro no avião como quem
procura o último sentido da vida –
consigo
levantar
voo.
Penso desde o primeiro segundo
depois disto o quê?
Filed under: poesia
Há coisas de que não me posso esquecer
como o sorriso sereno do meu avô, agora usa suspensórios e diz que vai guardar a maior posta de bacalhau para mim,
Filed under: Uncategorized
Fiz zapping na tv e vi
o homem que fuma pensativo
ópera cheia de brilhos e agudos
números de valor acrescentado
sorteios gigantes e sevilhanas
um miúdo de pijama a olhar o teto
crise de migrantes, homens contra homens
o mundial de canoagem e a vitória
aplausos na partida de futebol de salão
vestidos de noivas com plumas rosas
um urso, um abutre, um peixe gigante
a grande pirâmide do Egito
uma cena de romance num mercado
a junção de processos de coimas ex-scut
um telefonema muito tenso
desenhos animados cheios de esperança
um homem agarrado a uma rocha na corrente
um carro pintado de branco
bicicletas na estrada lisa, muito lisa
o tudo vai ficar bem com lágrimas nos olhos
apanhados e gargalhadas prolongadas
novelas mexicanas incompreensíveis
tráfico no aeroporto
uma mulher a dançar na banheira
ex-namorados a competirem
colecionadores loucos
o corpo todo tatuado
um concerto intimista
um filme mudo
traillers cheios de suspense
cartoons sarcásticos
receitas que dão fome
duas irmãs em desacordo
um ataque a um comboio
o agente a desvendar o caso
e lá fora carros e chuva.
Filed under: Uncategorized
Dilatou a minha pupila e eu olhei-me no vidro para
vê-la crescer como um poço negro para o interior de mim e
a íris desapareceu, eu desapareci num círculo que cresceu tanto.
Houve primeiro o susto de ver tudo desfocado
depois o prazer de ser uma névoa entre todas as névoas
foi o que pensei quando me chamaram ao consultório –
mediu a pressão do meu olho, avaliou a pupila dilatada
apertou-me a mão – sim, apertou-me a névoa de mão.
Levei na carteira a receita e no olho a alegria de tudo ser
mais bonito quando é um borrão que imaginamos
poder desenhar melhor.