Umumbigo


ver as águas dos rios correr
Outubro 30, 2020, 10:16 am
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pianocktail
Outubro 22, 2020, 10:58 am
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“- Qual é o princípio da tua invenção? – perguntou Chick.

– A cada nota faço corresponder um álcool, um licor um uma substância aromática – disse Colin. – O pedal-forte corresponde ao ovo batido e o pedal-surdina ao gelo. Para água de seltz, é preciso um trilo no registo agudo. As quantidades estão na razão direta das durações: a semifusa equivale à décima sexta parte da unidade, a semínima à unidade, a semibreve ao quádruplo da unidade. Quando se toca uma ária lenta, começa a funcionar um sistema de registo, por forma a aumentar a percentagem de álcool em vez da dose – o que daria um cocktail demasiado abundante. E, querendo, através de um regulador lateral pode fazer-se variar o valor da unidade, consoante a duração da ária, reduzindo-a por exemplo à centésima parte, a fim de podermos obter uma bebida que entre em linha de conta com todas as harmonias.

– É complicado – disse Chick.”

A Espuma dos Dias, Boris Vian



fica aquém
Outubro 10, 2020, 12:35 pm
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O brinco
Outubro 3, 2020, 5:49 pm
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Daí a cerca de uma hora sairia de casa. Sentar-me-ia no banco traseiro, guiada pelo meu pai. Ao lado dele iria a minha mãe, disfarçando algum nervosismo ao trautear melodias. Poderia sair um pouco mais tarde, mas o meu pai tem como lema chegar impreterivelmente antes do encontro marcado. Ser a primeira, neste caso, não seria uma vantagem. Teria que me baixar no banco traseiro, encostando o rosto ao assento, o ramo de noiva entre as mãos, enquanto parávamos num sítio estrategicamente afastado dos olhares de quem passava.

Mas a história não é sobre esse momento, nem sobre todos os que seguiriam, explosões de felicidade onde coube muito mais tempo que o tempo de um dia. A história é sobre essa hora antes de entrar no carro, em frente ao espelho, colocando o brinco esquerdo. Depois o direito, até ficar na mão a pérola feita ilha. Perdeu-se do resto do brinco e eu abri os olhos tanto quanto pude ao ver dois pedaços onde deveria haver um. Uma pequena onda de aflição invadiu o quarto. Talvez houvesse ali outros brincos que pudesse usar. Logo ouvi alguém dizer alto que ainda dava tempo de o ir arranjar, numa hora regressaria com o brinco intacto. A solução pareceu-me boa, arranjar o brinco, claro, é o dia em que todos os detalhes contam e um só conta metade da história. Alguém se preparava para sair com essa missão, até entrar a minha mãe e perguntar, cheia de luz: o que se passa? Parti o brinco, ainda há tempo para ir à ourivesaria. O quê?! Disse-o a rir como sempre, vais só com um brinco! Foi tão clara e desarmante que imediatamente me convenceu. Claro, vou só com um brinco. Ainda vais melhor! Isso mesmo, ainda vou melhor. Não sei se neste momento estavam todos convictos, entreolhando-se, vendo como o meu cabelo apanhado não disfarçava minimamente a ausência do brinco. Vais com um e vais mais do que bonita, continuava a minha mãe, trovão de energia e segurança, e eu já quase não me lembrava da outra opção. Alguém perderia aquela hora em que devíamos estar juntos para estar à espera de um brinco consertado. Eu teria os dois, sim, e depois? A minha mãe sempre foi exímia a medir prioridades e a dar a importância certa às coisas. Não era um vestido rasgado, felizmente, não era um sapato sem salto, era um acessório e, vendo sempre o lado positivo de tudo, seria mais singular com um só brinco, estaria sem dúvida melhor. O meu pai concordou, é que toda a gente leva dois. Só aquele esquerdo teria o brilho principal e ficaria esta história para lembrar. Porque não se criam memórias sobre dois brincos intactos, um só brinco é a verdadeira história.  A maior perfeição é não se ser perfeito, sempre me ensinou a minha mãe de variadas formas, e a imperfeição tem que andar de mãos dadas com amor, confiança e alegria. E ousadia, claro. Nas fotografias pude sempre escolher entre dois ângulos – com ou sem brinco? – e sempre que me apontaram a orelha e perguntaram se tinha perdido um deles, encolhi os ombros – parti-o e vim com um – com risos à mistura porque este episódio conta algo sobre mim, um pouco desajeitada em certas coisas ou, seguindo a filosofia de quem me fez nascer, com um jeito muito único.
Já passaram três anos sobre este dia. Agora sou mãe e deparo-me diariamente com escolhas que devo fazer para viver o tempo da melhor forma possível. E há esta história que se transformou num farol a lembrar-me o que tem valor e o que não tem e como há que encarar o que pode não correr exatamente como imaginado com leveza. Era só um brinco, mas é muito mais do que isso, é realmente uma forma de viver. Semear certezas fundamentais, com ternura, não enredar-se em insignificâncias para criar espaço para os significados que nos salvam. Encontrar em todos os tropeções uma alegria, desvendar a beleza de todos os momentos e seguir com determinação com essa gargalhada sonante tão característica da minha mãe. 
Entretanto arranjei o brinco, mas sigo com vontade de usar só um.