Umumbigo

Ter uma senha com um número que nunca é chamado – façamos o exercício de imaginar. Outros números avançam, aquele foi ignorado. Há um grito por sobrevivência e começa o tumulto – a arte não tem limites, teatro é representação e não representatividade. Sim, arte é trampolim para sermos o que não somos e essa liberdade não pode ser negada. Arte também pode ser agente de mudança, pode ser política, como pode não ser. Não é o bem sobre o mal, duvida do que é o bem, do que é o mal, melhor – não acede a dicotomias. É geradora de reflexão e emoção. Não é sagrada, não existem guardiões. Mutável, e isso não é o fim da ficção. Arte é uma forma de pensar e somos todos chamados a pensar. Sem certezas, iluminando dúvidas. Sem medos ou silenciamentos. E tantas outras coisas que não sei e que não cabem aqui. Acredito que qualquer criador deve questionar a todo o momento – qual é a história que não estou a contar? Seria bom que toda a discussão que tem acontecido sobre a peça Tudo sobre a minha mãe – e ainda bem que tem acontecido e que há discórdia – pudesse gerar esforços mais ativos e sistemáticos para respondermos à pergunta: como evoluir na subnutrição crónica da cultura? Como é que ainda não estamos a integrar mais arte e economia? Num meio altamente precário vê-se como cresce sem controlo a radicalização perigosa – uns lutando contra outros, e não a favor de todos. Talvez porque com fome não se possa pensar. Ou escutar, ou ter empatia. Na arte e na vida.

Para mim, isto não é sobre trans só poderem representar trans. É sobre trans poderem representar cis, nuvem, pássaro, o que o papel determinar. (Isso está a acontecer com que frequência?) Cis poderem representar trans, nuvem, pássaro, o que o papel determinar. Humanos usando a imaginação e o corpo para serem outra coisa. Ou a mesma coisa. Que, vamos sonhar, um dia já não precisam de sigla alguma e de mais divisões e se tratam pelo nome.

Dificilmente se faz uma disrupção ou pedido de socorro ou integração de minorias violentadas com brandos costumes. Pode fazer-se, mas demora necessariamente mais tempo – existem circunstâncias que nem imaginamos que não permitem esse tempo. Há demasiados gritos por sobrevivência. Não devíamos sair das trincheiras e unir cabeças para fazer melhor?

” — Gostas do fumo das locomotivas?

— Gosto dos meios de transporte. De sonhar com viagens. De me ir embora sem ir embora. «Ir e ficar e com ficar partir.»

A Fúria, Silvina Ocampo

“Observando o maluco da minha rua, pensava que o milagre do Natal talvez fosse conseguir que, um dia por ano, voltássemos a ser a criança sem cultura nem mancha que veio ao mundo. A matéria pura e primeira que nem a loucura consegue apagar. Uma faísca da coisa inicial, imaculada. O maluco foi o bebé que a sua mãe pegou nos braços e no qual depositou esperanças. Beijou-o. Terá sido o seu menino. O maluco teve de se sujar para atravessar a vida. O prodígio da vida. A dádiva também é o direito a sujarmo-nos. Que viagem uma pessoa tem de fazer durante tantos anos!”

Um Cão no Meio do Caminho, Isabela Figueiredo