Umumbigo


Sair de casa para levantar os olhos
Janeiro 31, 2015, 9:18 pm
Filed under: reportagem, viagens

É domingo e acordamos com uma ideia a despontar dos cabelos despenteados. Talvez resistir à preguiça do último dia da semana, talvez arriscar viajar no Porto. Entramos por uma porta aberta: a rua.

O Joel é um miúdo com muitos sonhos nos pés. Repete passos rápidos com a bola numa rua íngreme que sobe ao Miradouro da Vitória. Está sozinho mas também acompanhado por Ronaldo e Messi. Diz serem os dois melhores jogadores do mundo, pois claro. E só perguntámos porque saímos de casa de olhos levantados e não pudemos passar pelo miúdo sem saber como se chama. Joel de brinco grande e ar de reguila, esqueceste-te de perguntar-nos o nome e dir‑te‑emos só que somos viajantes na nossa cidade, então bom treino e vê se chegas a casa a horas sem nenhum joelho rasgado.

As melhores histórias nascem da curiosidade em procurarmos coisas novas. Como esta de, ainda antes de nos cruzarmos com o Joel, termos querido conhecer o Centro Português de Fotografia. Afinal, neste dia de janeiro azul o tempo tem tempo. Quase a explorarmos o edifício que foi a Cadeia da Relação, erguido entre o casario e paredes meias com o convento de S. Bento da Vitória, vemos as últimas gaiolas a entrar em carrinhas. São resquícios da Feira dos Pássaros, todos os domingos juntando asas a bater aqui no coração do centro histórico do Porto, de onde vemos os Clérigos brilhando em contraluz e a Cordoaria tão quieta.

Ao entrarmos avisam-nos que podemos fotografar tudo. Encontramos no primeiro piso as enxovias, originalmente de granito, muito escuras e frias, onde se acedia apenas por alçapões. Hoje recebem exposições como The Other European Travellers. É um encontro curioso: procurámos a viagem e aqui está ela nas memórias da emigração.

Somos então convidados por Barros Bastos, o capitão das trincheiras, a subir ao segundo piso. As imagens da 4ª Companhia dançam na cabeça para contrastar depois com a ternura do Postal de ano novo com Hilda, fotografada em 1908 por Aurélio Paz dos Reis. O brinde sereno da criança é encimado por um relógio, uma camélia, um busto, um globo terrestre.

Ainda podemos subir mais. A última vez que a Miriam subiu estas escadas estava muito grávida. Subimos tudo, já a Mia dá os primeiros passos, e vemos a vista de postal emoldurada na janela. Neste último piso ficavam os quartos de Malta, prisões individuais que se encerravam apenas durante a noite para “pessoas de condição”. Camilo Castelo Branco era uma delas, Ana Plácido a amante proibida também encarcerada por delito de amor.

Sabemos que as celas se apropriaram dos corpos ao vermos fotografias dos presos e de repente ouvimos um miúdo perguntar à mãe:

– Onde é que está a barbuda?

Roda depois sobre si mesmo e olha de cabeça para trás as manchas no teto. A madeira a ranger debaixo dos pés e nós quase a percorrer a última sala onde sobreviveram malfeitores, larápios, revolucionários, vadios. A prisão seria desativada alguns dias depois da revolução de 74.

Já cá fora, no Largo Amor de Perdição, está o sol a rasgar nuvens e mais miúdos chutando uma bola gasta. Camilo ficou lá dentro, nas memórias de uma cela. Cá fora cresce só a liberdade de um destemido que grita ao mais pequeno quando falha um passe: És mesmo gordo! Podíamos chamar o Joel para reforçar a equipa ou então podemos já começar a descer ao Passeio das Virtudes. Lá onde há música e corpos estendidos na relva. Bebe-se da garrafa e fuma-se devagar.

Pelo caminho um chafariz bonito nas Taipas, um coração vermelho grafitado na pedra. Teríamos visto isto se não estivéssemos a estrear os olhos? Hoje a cidade de sempre é uma surpresa e aqui está o Joel no momento do encontro, agora já subimos ao Miradouro da Vitória e demoramo-nos num casal a comer maças verdes. Pintam um Porto descomprometido e jovial.

– Porto es mi ciudad favorita.

Isto disse-o uma espanhola e outros três acenaram que sim. Sentimos orgulho. Queremos ser intrometidos mas ser turista na própria cidade pode intimidar, a língua aproxima‑nos e pode também afastar-nos. Íamos meter conversa mas já se levantaram com urgência de chegar a qualquer lado. Vamos também noutra direção, descendo sempre por ruas estreitas mas generosas, se pode isto ser, mais um pouco e aqui é a Ribeira. Ouvimos um sambinha junto ao rio. Há tanta gente.

Para perceber a evolução da cidade há que voltar a 96 quando a Unesco carimbou o Porto “Cidade Património Mundial”. Mais tarde, o Porto era com Roterdão elegido Capital Europeia da Cultura, em 2001. À cidade chegam milhares de turistas. Há tanta gente.

O Porto põe hoje as mãos nas ancas ainda com mais confiança e tem ganas de aventura. O Porto de Nasoni e dos Almadas, de D. Pedro IV ou da Dona Graça do Bolhão. Do quotidiano de grande cidade e da proximidade de aldeia onde todos veem as cuecas e meias uns dos outros no estendal.

Vamos guiados pela Maura e a imaginação já nos engorda, sabia-o bem Agostinho da Silva. O destino é uma tasca típica sem nome nas Escadas da Barreda. E quando entramos sabemos que não mais de lá sairemos até ser imperativo continuar a ordem dos dias. A Sr. Arminda vem ágil do balcão trazendo bolinhos de bacalhau, iscas de fígado, moelas, vinho a malgas e o bom receber portuense.

Saímos embrulhados em sonhos de viagens e óleo de fritar e abraçamos um desvio para irmos ver a ponte D. Luís toda pontos de luz. Ali está a Serra do Pilar dizendo-nos olá. Continuamos e junto a S. Bento toca o sino quando cai uma chuva de gaivotas. Talvez por sermos uma nuvem de fritos, quem sabe. É noite e olhamos para cima. A porta da rua fica entreaberta esperando a nossa próxima visita, então até ao próximo domingo.

janeiro 2015



volto já
Janeiro 27, 2015, 11:42 pm
Filed under: poesia

O poema me levará no tempo

Quando eu já não for eu

Talvez uma nuvem disforme

Toda branca e fúria

Ou outra coisa qualquer

Ponho o dedo no mel

Mas eu já não sou eu

Quando finalmente é noite alta

E há um vulto no jardim

Posso ser este quarto

minguante

Envolto em ciprestes

Altos e esguios de medo

Mais do que a noite e tu

Ou o próprio poema

Talvez um gato a lamber flores

A caçar grilos e luares gordos

E eu que só encontro raízes, cicatrizes

Máquinas de costura velhas

Cosendo pontos absurdos e crus

Devia haver janelas

Devia haver qualquer outra coisa

Mas eu não lavei o sono dos olhos

Esqueci-me de acordar

Possa talvez ir à mercearia

Comprar meio quilo de tempo

Espera um pouco,

Poema

Volto já e trago mel.



jeep’s blues
Janeiro 20, 2015, 1:24 pm
Filed under: música | Etiquetas:


lua cheia
Janeiro 10, 2015, 11:38 am
Filed under: de ler

“Era lua cheia, daquelas que transformam o mundo em fantasma, quando todas as coisas, as vivas e as inanimadas, estão murmurando misteriosas revelações, porém vai dizendo cada qual a sua, e todas desencontradamente, por isso não alcançamos a entendê-las e sofremos esta angústia de quase ir saber e não ficar sabendo.”

História do Cerco de Lisboa, José Saramago



ensinar
Janeiro 10, 2015, 11:38 am
Filed under: de ler

“O senhor Vitorino dizia que o Manuel olhava os peixes nos olhos e atirava-os borda fora. Isso, creio ter compreendido corretamente o ritual, servia para lhes imprimir na biologia a mensagem de que poderia matá-los, mas que, em vez disso, os poupava. E, quando os libertava, dizia-lhes, quase encostando os lábios à boca ofegante do peixe: vai ensinar isso ao mar. O senhor Vitorino explicou-me este comportamento do seguinte modo: era para educar o mar, ele pode matar-nos, mas é melhor que aprenda a salvar-nos.”

Mar, Afonso Cruz



polvos
Janeiro 10, 2015, 11:37 am
Filed under: de ler

“Os polvos têm três corações. É incompreensível que o ser humano tenha apenas um, e, em muitos casos, a sua desoladora ausência.”

Mar, Afonso Cruz



vísceras
Janeiro 10, 2015, 11:36 am
Filed under: de ler

“Se abrires um poema para ver as suas vísceras, veremos farinha, água e sal. Se for um poema recente, ainda estará quente, a cheirar a forno, a fogo e lenha.”

Mar, Afonso Cruz



ousadia
Janeiro 4, 2015, 7:47 pm
Filed under: nostalgias

CCLIV

São veredas paralelas que nunca se tocam e de repente uma árvore cresceu uma imensidão e tocou com um dos galhos uma outra árvore – do outro lado, exatamente – e permaneceu assim até hoje. Chama-se ousadia.



mar
Janeiro 4, 2015, 4:04 pm
Filed under: de ler

“Levei o homem, apesar da sua resistência, a ver o mar. Jamais esquecerei a cara dele, os olhos, a boca, as mãos, quando a paisagem marítima lhe bateu no rosto. Amparei-o nos meus braços enquanto ele tentava dizer alguma coisa, enquanto a sua boca abria e fechava com a língua emaranhada, os olhos encardidos de horizonte. É, na nossa vida, completamente desnecessário ter qualquer proximidade com o mar, mas a sua simples visão provoca alterações profundas na alma. Creio que, tal como o resultado de uma soma é uma evidência para a razão, a presença do mar é uma evidência para os sentimentos. Nada é estanque na natureza, por isso não é só o delicado equilíbrio entre os sais de sódio e de potássio que se altera radicalmente, modificando a composição do corpo, dos ossos, do sangue, é também a alma que fica salgada, ondulada, habitada por tubarões, algas, sargos, polvos, ostras e cachalotes. Julgo que aquele homem saiu dali com a certeza de que era, tal como todos os homens o são, um náufrago.”

Mar, Afonso Cruz



leões
Janeiro 3, 2015, 10:57 pm
Filed under: nostalgias

CCLIII

– Não acordem os leões, estão a dormir.

Foi esta ordem que Lucília gritou várias vezes de madrugada até Petrúcio correr a acordá-la.

De olhos de menina assustada já abertos, continuou:

– Não acordem os leões, estão ainda a dormir.

Ele abanou-a levemente até Lucília soltar-se do abraço, levantar-se e caminhar à volta da cama repetindo a frase e tentando sair pela porta para, provavelmente, chegar lá fora. Nunca saberemos onde quereria ir naquele momento falando coisas de selva e medo. Foi o primeiro ataque de sonambulismo daquele mês: janeiro.