É domingo e acordamos com uma ideia a despontar dos cabelos despenteados. Talvez resistir à preguiça do último dia da semana, talvez arriscar viajar no Porto. Entramos por uma porta aberta: a rua.
O Joel é um miúdo com muitos sonhos nos pés. Repete passos rápidos com a bola numa rua íngreme que sobe ao Miradouro da Vitória. Está sozinho mas também acompanhado por Ronaldo e Messi. Diz serem os dois melhores jogadores do mundo, pois claro. E só perguntámos porque saímos de casa de olhos levantados e não pudemos passar pelo miúdo sem saber como se chama. Joel de brinco grande e ar de reguila, esqueceste-te de perguntar-nos o nome e dir‑te‑emos só que somos viajantes na nossa cidade, então bom treino e vê se chegas a casa a horas sem nenhum joelho rasgado.
As melhores histórias nascem da curiosidade em procurarmos coisas novas. Como esta de, ainda antes de nos cruzarmos com o Joel, termos querido conhecer o Centro Português de Fotografia. Afinal, neste dia de janeiro azul o tempo tem tempo. Quase a explorarmos o edifício que foi a Cadeia da Relação, erguido entre o casario e paredes meias com o convento de S. Bento da Vitória, vemos as últimas gaiolas a entrar em carrinhas. São resquícios da Feira dos Pássaros, todos os domingos juntando asas a bater aqui no coração do centro histórico do Porto, de onde vemos os Clérigos brilhando em contraluz e a Cordoaria tão quieta.
Ao entrarmos avisam-nos que podemos fotografar tudo. Encontramos no primeiro piso as enxovias, originalmente de granito, muito escuras e frias, onde se acedia apenas por alçapões. Hoje recebem exposições como The Other European Travellers. É um encontro curioso: procurámos a viagem e aqui está ela nas memórias da emigração.
Somos então convidados por Barros Bastos, o capitão das trincheiras, a subir ao segundo piso. As imagens da 4ª Companhia dançam na cabeça para contrastar depois com a ternura do Postal de ano novo com Hilda, fotografada em 1908 por Aurélio Paz dos Reis. O brinde sereno da criança é encimado por um relógio, uma camélia, um busto, um globo terrestre.
Ainda podemos subir mais. A última vez que a Miriam subiu estas escadas estava muito grávida. Subimos tudo, já a Mia dá os primeiros passos, e vemos a vista de postal emoldurada na janela. Neste último piso ficavam os quartos de Malta, prisões individuais que se encerravam apenas durante a noite para “pessoas de condição”. Camilo Castelo Branco era uma delas, Ana Plácido a amante proibida também encarcerada por delito de amor.
Sabemos que as celas se apropriaram dos corpos ao vermos fotografias dos presos e de repente ouvimos um miúdo perguntar à mãe:
– Onde é que está a barbuda?
Roda depois sobre si mesmo e olha de cabeça para trás as manchas no teto. A madeira a ranger debaixo dos pés e nós quase a percorrer a última sala onde sobreviveram malfeitores, larápios, revolucionários, vadios. A prisão seria desativada alguns dias depois da revolução de 74.
Já cá fora, no Largo Amor de Perdição, está o sol a rasgar nuvens e mais miúdos chutando uma bola gasta. Camilo ficou lá dentro, nas memórias de uma cela. Cá fora cresce só a liberdade de um destemido que grita ao mais pequeno quando falha um passe: És mesmo gordo! Podíamos chamar o Joel para reforçar a equipa ou então podemos já começar a descer ao Passeio das Virtudes. Lá onde há música e corpos estendidos na relva. Bebe-se da garrafa e fuma-se devagar.
Pelo caminho um chafariz bonito nas Taipas, um coração vermelho grafitado na pedra. Teríamos visto isto se não estivéssemos a estrear os olhos? Hoje a cidade de sempre é uma surpresa e aqui está o Joel no momento do encontro, agora já subimos ao Miradouro da Vitória e demoramo-nos num casal a comer maças verdes. Pintam um Porto descomprometido e jovial.
– Porto es mi ciudad favorita.
Isto disse-o uma espanhola e outros três acenaram que sim. Sentimos orgulho. Queremos ser intrometidos mas ser turista na própria cidade pode intimidar, a língua aproxima‑nos e pode também afastar-nos. Íamos meter conversa mas já se levantaram com urgência de chegar a qualquer lado. Vamos também noutra direção, descendo sempre por ruas estreitas mas generosas, se pode isto ser, mais um pouco e aqui é a Ribeira. Ouvimos um sambinha junto ao rio. Há tanta gente.
Para perceber a evolução da cidade há que voltar a 96 quando a Unesco carimbou o Porto “Cidade Património Mundial”. Mais tarde, o Porto era com Roterdão elegido Capital Europeia da Cultura, em 2001. À cidade chegam milhares de turistas. Há tanta gente.
O Porto põe hoje as mãos nas ancas ainda com mais confiança e tem ganas de aventura. O Porto de Nasoni e dos Almadas, de D. Pedro IV ou da Dona Graça do Bolhão. Do quotidiano de grande cidade e da proximidade de aldeia onde todos veem as cuecas e meias uns dos outros no estendal.
Vamos guiados pela Maura e a imaginação já nos engorda, sabia-o bem Agostinho da Silva. O destino é uma tasca típica sem nome nas Escadas da Barreda. E quando entramos sabemos que não mais de lá sairemos até ser imperativo continuar a ordem dos dias. A Sr. Arminda vem ágil do balcão trazendo bolinhos de bacalhau, iscas de fígado, moelas, vinho a malgas e o bom receber portuense.
Saímos embrulhados em sonhos de viagens e óleo de fritar e abraçamos um desvio para irmos ver a ponte D. Luís toda pontos de luz. Ali está a Serra do Pilar dizendo-nos olá. Continuamos e junto a S. Bento toca o sino quando cai uma chuva de gaivotas. Talvez por sermos uma nuvem de fritos, quem sabe. É noite e olhamos para cima. A porta da rua fica entreaberta esperando a nossa próxima visita, então até ao próximo domingo.
janeiro 2015
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O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
Talvez uma nuvem disforme
Toda branca e fúria
Ou outra coisa qualquer
Ponho o dedo no mel
Mas eu já não sou eu
Quando finalmente é noite alta
E há um vulto no jardim
Posso ser este quarto
minguante
Envolto em ciprestes
Altos e esguios de medo
Mais do que a noite e tu
Ou o próprio poema
Talvez um gato a lamber flores
A caçar grilos e luares gordos
E eu que só encontro raízes, cicatrizes
Máquinas de costura velhas
Cosendo pontos absurdos e crus
Devia haver janelas
Devia haver qualquer outra coisa
Mas eu não lavei o sono dos olhos
Esqueci-me de acordar
Possa talvez ir à mercearia
Comprar meio quilo de tempo
Espera um pouco,
Poema
Volto já e trago mel.
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“Era lua cheia, daquelas que transformam o mundo em fantasma, quando todas as coisas, as vivas e as inanimadas, estão murmurando misteriosas revelações, porém vai dizendo cada qual a sua, e todas desencontradamente, por isso não alcançamos a entendê-las e sofremos esta angústia de quase ir saber e não ficar sabendo.”
História do Cerco de Lisboa, José Saramago
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“O senhor Vitorino dizia que o Manuel olhava os peixes nos olhos e atirava-os borda fora. Isso, creio ter compreendido corretamente o ritual, servia para lhes imprimir na biologia a mensagem de que poderia matá-los, mas que, em vez disso, os poupava. E, quando os libertava, dizia-lhes, quase encostando os lábios à boca ofegante do peixe: vai ensinar isso ao mar. O senhor Vitorino explicou-me este comportamento do seguinte modo: era para educar o mar, ele pode matar-nos, mas é melhor que aprenda a salvar-nos.”
Mar, Afonso Cruz
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“Os polvos têm três corações. É incompreensível que o ser humano tenha apenas um, e, em muitos casos, a sua desoladora ausência.”
Mar, Afonso Cruz
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“Se abrires um poema para ver as suas vísceras, veremos farinha, água e sal. Se for um poema recente, ainda estará quente, a cheirar a forno, a fogo e lenha.”
Mar, Afonso Cruz
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CCLIV
São veredas paralelas que nunca se tocam e de repente uma árvore cresceu uma imensidão e tocou com um dos galhos uma outra árvore – do outro lado, exatamente – e permaneceu assim até hoje. Chama-se ousadia.
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“Levei o homem, apesar da sua resistência, a ver o mar. Jamais esquecerei a cara dele, os olhos, a boca, as mãos, quando a paisagem marítima lhe bateu no rosto. Amparei-o nos meus braços enquanto ele tentava dizer alguma coisa, enquanto a sua boca abria e fechava com a língua emaranhada, os olhos encardidos de horizonte. É, na nossa vida, completamente desnecessário ter qualquer proximidade com o mar, mas a sua simples visão provoca alterações profundas na alma. Creio que, tal como o resultado de uma soma é uma evidência para a razão, a presença do mar é uma evidência para os sentimentos. Nada é estanque na natureza, por isso não é só o delicado equilíbrio entre os sais de sódio e de potássio que se altera radicalmente, modificando a composição do corpo, dos ossos, do sangue, é também a alma que fica salgada, ondulada, habitada por tubarões, algas, sargos, polvos, ostras e cachalotes. Julgo que aquele homem saiu dali com a certeza de que era, tal como todos os homens o são, um náufrago.”
Mar, Afonso Cruz
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CCLIII
– Não acordem os leões, estão a dormir.
Foi esta ordem que Lucília gritou várias vezes de madrugada até Petrúcio correr a acordá-la.
De olhos de menina assustada já abertos, continuou:
– Não acordem os leões, estão ainda a dormir.
Ele abanou-a levemente até Lucília soltar-se do abraço, levantar-se e caminhar à volta da cama repetindo a frase e tentando sair pela porta para, provavelmente, chegar lá fora. Nunca saberemos onde quereria ir naquele momento falando coisas de selva e medo. Foi o primeiro ataque de sonambulismo daquele mês: janeiro.