Umumbigo


noite
Agosto 31, 2014, 3:28 pm
Filed under: nostalgias

CCXLIV

– Vem aí trovoada.

A noite é quente em frente à lareira.

– Jesus está a ralhar.

Lucília dorme no colo de Mariana, é Maria quem fala de Jesus.

– Só os homens sabem ralhar.

Lucília mexe-se mas não acorda, é Mariana quem fala dos homens. Teve um até ali, não quer nenhum outro.



vida
Agosto 30, 2014, 3:31 pm
Filed under: nostalgias

CCXLIII

Era uma manhã perfeita para serem felizes. Ninguém se apercebeu do que ali aconteceu para tudo se inverter. Só a vida, diria Maria. Aconteceu a vida que quis que Mariana e João gritassem nunca mais se verem. Como saberiam? Sempre haveria vida por acontecer, poderiam lá saber se aquilo seria real ou não, era uma projeção unicamente deles traçada num momento em que gostariam que de facto se concretizasse no futuro, mais do que gostariam precisariam, deram aquilo como certo – nunca mais te quero ver, nunca mais me vês – e deram aquilo como a solução do mundo, esqueceram-se haver sempre vida a acontecer e essa é a mais importante. A única que conta, sempre imprevisível e, no final do dia, definitiva.



puxar
Agosto 29, 2014, 3:11 pm
Filed under: nostalgias

CCXLII

Foi puxando por ela dia após dia. Puxar por alguém é um ato de crença, algo como acreditar que vais esticar com todas as dores de crescimento desde os joelhos aos olhos que vêm coisas tão novas todos os dias, porra para as dores de crescimento era o que pensava Lucília farta de não conhecer o corpo que quando finalmente já conhecia logo mudava. E Mariana sempre puxando com carinho mas firmeza.

– Não é nada fácil ser-se pequenino – ouviu muitas noites Lucília no colo onde já a custo cabia.

Um dia ficou maior do que a mãe e aí podia então Mariana morrer com um pouco menos de medo.



saudades
Agosto 28, 2014, 3:35 pm
Filed under: nostalgias

CCXLI

Dentro de casa corre a luz lá de fora. Momentos antes, as portadas abertas tinham-na convidado a entrar, olá novo dia. E a luz entrara.

Pensa que todas as vidas que conhece são melhores do que a sua e falta conhecer tantas. Imagine-se lá como lhe pode ter calhado a menos feliz de todas.

Ondina não sabe não ter saudades de Damião mesmo nos dias bonitos. Ondina é ainda mais triste nos dias mais bonitos.



perda
Agosto 27, 2014, 3:35 pm
Filed under: nostalgias

CCXL

O que perde uma pessoa quando perde outra?

Perde a pessoa, sim, e um pouco ou muito de si também.



balas
Agosto 27, 2014, 2:51 pm
Filed under: de ler

“Não havia sons de tiros nem balas tracejantes riscando o céu, não havia conversas sobre guerra.

Nunca mais?”

Predadores, Pepetela



nimbo
Agosto 26, 2014, 3:35 pm
Filed under: nostalgias

CCXXXIX

Naquele dia aprendeu uma palavra nova. Olhando uma enorme nuvem cinzenta muito baixa, quase podendo tocá-la com a mão, ouviu Petrúcio

– É um nimbo.
– Isso dá em chuva?
– Pode dar, é uma nuvem carregada.
– Vamos ficar molhados.
– Pode ser também uma auréola.
– O que é isso?
– O círculo de luz que vemos à volta dos santos.
– Nunca vi um santo.
– Eu também não, é o que dizem.

Lucília encolheu os ombros. Sempre tinha dúvidas sobre o que alguém que não podia abraçar dizia. Isto significa ter maiores dúvidas à medida que o número de pessoas defensoras de alguma coisa ou coisa nenhuma crescia. Maria dizia – amanhã está sol – e Lucília podia abraçá-la para acreditar. As tias diziam – há amoras silvestres naquele caminho – e mesmo a custo todas cabiam no abraço de Lucília, logo acreditando. Petrúcio apontava o nimbo e um nimbo então seria. Sabia no entanto não poder cingir todos os que falavam da luz dos santos, nunca teria braços tão grandes. E o tamanho do abraço que cada um de nós pode dar não é nenhum acaso.



álamos
Agosto 24, 2014, 3:35 pm
Filed under: nostalgias

CCXXXVII

Tantos álamos.

Tão altos.

Foi o mais extraordinário que viu durante muito tempo. Fechou-se depois em casa a escrever e a aumentar o vazio de não ver nada mais extraordinário do que aquilo durante muito tempo. Eram tantos e tão altos a chegar ao fim do céu. Depois disso o que há mais?



acaso
Agosto 21, 2014, 5:34 pm
Filed under: nostalgias

CCXXXIV

Estou a bater à tua porta. Sabe que um acaso é muito importante e venho cá hoje trazido por ele. Pareci uma folha de outono soprada aleatoriamente todo o caminho e com isto quis só embelezar a corrida atrapalhada até aqui. Se existir o acaso de estares em casa, queira o acaso que a abras. Primeiro a porta, depois a casa, logo um pouco qualquer teu que será imenso. Se o acaso permitir, que me vejas como te vejo.



white
Agosto 21, 2014, 2:14 pm
Filed under: música