Umumbigo


Ossanha
Março 30, 2010, 1:27 pm
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O homem que diz “sou” não é
Porque quem é mesmo é “não sou”



Maria Magola
Março 19, 2010, 10:01 pm
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Maria Magola, a louca. O povo reza que fugiam dela como o Diabo foge da cruz. Não se metam com a mulher doida. Louca, louca. Entrava na Igreja e todos sabiam: “Lá vem a Magola.” Os miúdos encostam-se às pernas altas dos pais, alguns agarram um folho das saias maternas, compridas e engomadas. Ouvem a porta bater com força violenta, os passos rápidos e agressivos dirigidos até ao padre. Tudo num segundo, entre um “ah” de exclamação: “Lá vem a Magola.” Os acólitos não têm tempo de reagir, os fiéis não se irão meter. Magola vai depressa, uma rajada de pó e fúria. O padre lá está, prega(n)do no altar. Absorvido pelo ouro e púrpura e olhares mártires dos santos. E Magola já lá está também: tudo se passou num bocejo ou suspiro: duas estaladas fortes nas faces rosadas do pároco, algum murmúrio e lá vai Magola, já fez o que tinha que ser feito. É louca, que havemos de fazer? A missa continua. Os olhares mártires continuam aqui, ainda não tomámos a hóstia e o miúdo hoje vai tentar que nada se cole ao céu da boca.  Tomai todos e comei. “Pára quietinho com a língua”, diz-lhe a mãe, afinal sempre colou.

Diziam-na uma velha “vulgar” até chegar o ataque de loucura. Seja o que se entenda por vulgaridade, partilhava a casa consigo mesma. Maria Magola que era também Maria sozinha. Tinha alturas em que não era temida, apenas mais uma vizinha e mais dois pés que percorrem os caminhos de ervas daninhas, tempos de tranquilidade. Siga a missa, “o céu está limpo.” Até Magola começar a correr pelas ruas, descalça e desvairada, talvez mais costumeira do que sempre. Vai ela de vassoura, que vais fazer? Ou na bicicleta, com o penico atado ao assento, uma colher de pau para as eventualidades. Quais? E os miúdos já estão a fugir, já correm aos quintais e avisam os pais e avós. “A Magola anda aí.” Sussurros compreendidos entre gerações, lá vai a louca. A correr a aldeia, a distribuir bofetadas. Entrou agora mesmo na mercearia e já não há tempo para fugir ou para pegar numa lata de conserva. Todos recebem a estalada furiosa, é precisa uma força bruta para segurar a mulher. E nem alguns homens apelidados de “valentes” se atrevem. Dois braços não chegam, não chegam. Quatro, talvez seis, quantos mais melhores, anda aqui Alcides, corre que a Magola vem aí.  E se era internada em Coimbra, fugia e voltava pela berma da estrada, percorria quilómetros a pé, sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.

Maria Magola tinha outra obsessão, esta vida não são só bofetadas. É que ela gostava de um menino. “És bonito como uma estrela, um dia hei-de atirar-te ao poço.” Chegou a conseguir agarrá-lo e correr uns palmos de terra batida com o loiro debaixo do braço. Mas, como sabemos, as estrelas não se afogam nos poços. E ainda havia quem ousasse dominar Magola, a louca doida de loucura.

Magola viveu na aldeia e a aldeia viveu em Magola. Cruzaram vidas, fúria e medo. Ela lá teria os seus motivos, a aldeia nunca acordou para ouvir. Porque na loucura há muita sanidade. E na sanidade há, irremediavelmente, loucura.



tecer, fiar, bordar
Março 13, 2010, 10:54 pm
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“Gostaríamos de saber, em crianças não temos coragem — em miúda, abria os olhos e os ouvidos, mas nunca perguntei nada —, deixamo-los envelhecer sem nos dizer, esquecer, perder o tino, morrer, e a história deles deixa de ter testemunhas, a sua história de amor deixa de ter historiógrafo, resta apenas bordar, ser  o rapsodo de farrapos e de pedaços, resta apenas fazer como a minha bisavó — era costureira: unir os tecidos, os têxteis, os textos, coser bocados desirmanados de sonhos e de panos, de panos de que são feitos os sonhos. Ignoramos se conseguiriam usá-las, a essas roupas que fabricamos em memória deles fazendo fé em fotografias esmaecidas e relatos soltos. Não se sentiriam um pouco apertados? Já não nos lembramos bem das suas medidas nem do seu tamanho, talvez não tenhamos a medida exacta da sua vida, dos seus amores, mas é assim , só resta tecer, fiar, bordar — claro, claro que não é o texto de origem, não são peças históricas, não estávamos lá, não se consegue reconstituir fielmente a história do amor, é somente uma história de amor, histórias de amor, borda-se, inventa-se, entremeamos as deles e as nossas, não se é fiel — mas que importância é que isso tem? — como dizia a minha bisavó quando lhe fazíamos um relato demasiado longo cujas peripécias se coadunavam mal com a sua própria vivência: isso é romance.”

O amor, romace, Camille Laurens