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“Quase parece que, se não construir raciocínios cheios de subtileza e rematar com uma conclusão falsa um erro assente em premissas verdadeiras, nunca poderei distinguir o que devo evitar e o que devo fazer. (…)
Este homem está cheio de medo: em vez de brincar ajuda-o a libertar-se dos seus temores.”
Cartas a Lucílio, Séneca
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“Por fim venceu o vermelho-sangue mas atenuado, como o sangue que corre nas calhas dos matadouros, com laivos de gordura, a boa gordura que fará sabão de toilette com perfume de alfazema ou rosas.”
A Ronda da Noite, Agustina Bessa-Luís
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“Um dia que levou para casa um estojo com material de parto, a filha mais nova, julgando que o fórceps era uma tenaz da salada, mandou-o para a mesa dentro da saladeira com alface de Inverno; abrigada dentro de vasos de barro, a alface de Inverno apodrecia, e só as folhas interiores ganhavam um sabor fresco e leitoso. Leituga, lhes chamavam, por alguma razão. E o fórceps, brilhante e sensual nas suas curvas reverentes à mão que o usasse, causou sensação.”
A Ronda da Noite, Agustina Bessa-Luís
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– Essa palavra está contaminada.
– E o que fazemos?
– Descontaminamo-la.
– Como?
– Deixamo-la de lado até se limpar.
– Sozinha?
– Sim, o tempo limpa.
– Quanto tempo?
– O tempo que for preciso.
– Como sabemos que já não está contaminada?
– Não sabemos precisar. Geralmente, quando nos esquecemos dela.
– Como nos voltamos a lembrar?
– Há sempre alguém que se lembra. Há sempre alguém.
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“- Diga-me, por favor, a partir daqui, que caminho é que devo seguir?
– Isso depende bastante do sítio para onde queres ir – respondeu o Gato.
– Pouco me importa para onde – disse a Alice.
– Então não tem importância para que lado vais – disse o Gato.
– Contando que vá dar a qualquer parte – acrescentou Alice, explicando-se melhor.
– Ah, isso é que vais, de certeza – disse o Gato -, se andares o suficiente…”
Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll
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o vagabundo
comia o lixo dentro do lixo
defecava dentro do lixo
um dia deixou-se dormitar
dentro do lixo
e de madrugada foi erguido no ar
atirado ao camião do lixo num supetão
o lixo visível, ele não
era noite calada, iam os homens calados
o vagabundo permaneceu calado
nunca mais se soube nada dele.
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“Há manhãs à beira-mar em que tudo parece um pouco de tinta muito leve e mais nada. Um pouco de tinta e frescura. A própria luz molhada estremece. O doirado tem muita água e desbota. Uma gota de azul basta para o mar e o céu. E a manhã, trespassada e a escorrer, nascida e hesitando, faz medo que se desvaneça como fantasma de manhã.”
Os Pescadores, Raul Brandão
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Acabou de acordar
não consegue abrir os olhos
a luz magoa
violenta
tão cedo é
o vidro embaciado e isso pouco importa
já não desenha corações nos vidros embaciados
não vê corridas de gotinhas
havia que adivinhar qual a próxima a formar-se
a cair
duas a crescer, está quase
apostou-se numa
foi a outra a formar caminho
no último instante
quão cedo é
as próprias gotas
inertes
desafiam a gravidade
tragam-lhe 1) relógio parado
2) binóculos de criança
3) noite a formar caminho
de sentido único
tão líquida quanto
terra.