Umumbigo


ousadia
Janeiro 4, 2015, 7:47 pm
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CCLIV

São veredas paralelas que nunca se tocam e de repente uma árvore cresceu uma imensidão e tocou com um dos galhos uma outra árvore – do outro lado, exatamente – e permaneceu assim até hoje. Chama-se ousadia.



leões
Janeiro 3, 2015, 10:57 pm
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CCLIII

– Não acordem os leões, estão a dormir.

Foi esta ordem que Lucília gritou várias vezes de madrugada até Petrúcio correr a acordá-la.

De olhos de menina assustada já abertos, continuou:

– Não acordem os leões, estão ainda a dormir.

Ele abanou-a levemente até Lucília soltar-se do abraço, levantar-se e caminhar à volta da cama repetindo a frase e tentando sair pela porta para, provavelmente, chegar lá fora. Nunca saberemos onde quereria ir naquele momento falando coisas de selva e medo. Foi o primeiro ataque de sonambulismo daquele mês: janeiro.



sofreguidão
Janeiro 2, 2015, 6:44 pm
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CCLII

A sofreguidão e a ânsia pela vida faziam-na queimar várias vezes a língua e gelar os dentes. Bebia o chá fervendo com a mesma pressa com que trincava sorvete. A dor nunca suscitou uma leve desaceleração que fosse. Helga não sabia não correr por tudo, para tudo e contra tudo, essencialmente contra si mesma.



sorte
Janeiro 1, 2015, 11:16 pm
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CCLI

Petrúcio não acreditava em nada que não se vê ou toca ou ouve ou cheira mas pelo sim pelo não beijava todas as manhãs ao acordar e todas as noites ao deitar a cabeça de uma santinha de que não sabia o nome ou o milagre, também quando se deitava de manhã e acordava quase de noite em dias do avesso. Era talvez o seu amuleto da sorte, todos precisamos de um pouco de sorte e afinal a sorte ajuda quem a procura.



poema
Dezembro 26, 2014, 4:55 pm
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CCL

Tudo isto pode ser um poema inútil mas belo. E se for.



entrelaçar
Dezembro 26, 2014, 4:39 pm
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CCXLIX

Quando duas pessoas dormem juntas não podem fugir a uma coisa muito simples que é esta de entrelaçar sonhos. Então não sabemos se o sonho é nosso, se é dele ou dela que dormem aqui ao lado, o pé no meu pé mais a mão no umbigo e uma nuvem de cabelos brincando na almofada. Já não sabemos se nos sonhamos, se te sonho. O que é sonhar ou estar acordado. O que é sonhar sonhos nossos ou dos outros se não são todos iguais a quererem ser qualquer coisa melhor, qualquer coisa maior. Ou tão diferentes que têm que partir para a batalha e será por isto que acordamos por vezes cansados.



natal
Dezembro 3, 2014, 11:16 am
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CCXLVIII

Petrúcio acompanhou o primeiro desgosto amoroso de Lucília. Seriam também os únicos – o desgosto e o avô amaciando uma desilusão do tamanho de tudo o que é grande.

Nesses tempos caminharam muito. Petrúcio punha o cachecol e da porta dizia uma palavra só: Lucília.

Vinha do canto escuro onde estava já de sobretudo. Saíam para o dia ou para a noite.

Era noite.

A miúda não falava como deve ser em todos os grandes desgostos. O velho cantarolava e volta e meia dizia coisas como

– Enquanto existirem no mundo pessoas que vestem varandas e janelas com luzinhas de natal, há esperança de qualquer coisa melhor.

Lucília sorriu o primeiro sorriso desde que ficara feita estátua gelada. Ouviu-se qualquer coisa rachar e Petrúcio a assobiar um fado contente.



frase
Dezembro 2, 2014, 9:36 pm
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CCXLVII

Toda a gente nasce.

Se pudessemos contar as vezes que esta frase dançou na cabeça de Lucília ficaríamos muito cansados. Diremos só que foram muitas. E parecendo uma frase pequena saibam que tem o comprimento de todos os partos do mundo.



nua
Dezembro 1, 2014, 10:07 pm
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CCXLVI

Teve que passar duas portas. Quando uma se fechou abriu a outra. Sentiu medo ao antever o estrondo do bater da madeira velha, viu-se sem saída decretando o trinco fechado para sempre. Mas logo implodiu qualquer coisa como alegria só de poder imaginar tudo – e tudo é muito – atrás da porta prestes a tocar.

Escondia-se um quarto vazio e com um olhar ficou a descoberto. Pareceu-lhe tão verdadeiro. Por isso quis também ela ser inteira. Despiu-se e sentou-se no chão nua. Os olhos ficaram abertos.



estrelas
Novembro 15, 2014, 1:35 pm
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CCXLV

Houve um dia em que todas as estrelas do céu caíram na terra. Foi mais do que um deslumbramento. Foi um acontecimento tão grandioso que todos saíram de casa de noite cerrada e deixaram atrás de si as portas abertas. Houve namorados vindos da praia correndo com cabelos de mar e areia. Houve o cego da rua vindo pela mão de um estranho. Houve tantas estórias raras de pessoas saídas de quartos fechados há muito tempo. Estoirou no manto negro um relâmpago nervoso. As crianças assustaram-se. Havia quem se aproximasse das estrelas para poder tocar uma só. O medo crescia entre todos num equilíbrio difícil entre terror e fascínio. Podia aquilo queimar a mão? Um velho gritava que ia pegar na maior de todas e era já.

Foi aí que Lucília agarrou a estrela mais pequena e num ápice meteu-a no bolso do macacão. Ninguém a viu. Saiu a correr entre a multidão com um brilho intenso a iluminar a ganga gasta. Todos olhavam em suspensão o que gritava ir tocar já uma e só o cego viu temor no olhar do velho, todos os outros viram coragem.

Lucília corria muito assustada mas muito feliz, se pode isto ser. Pôde naquele dia em que caíram todas as estrelas do céu na terra, anúncio de fim para uns e princípio para outros.