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“E receoso também dos sítios altos e do sangue e dos terramotos; tirando isso, totalmente destemido, se excluirmos o medo da morte, o medo de me pôr a gritar no meio de uma multidão, o medo da apendicite e até o medo das doenças cardíacas, que por vezes me mantém no quarto a olhar para o relógio e a pressionar a veia jugular, a contar as pulsações, a ouvir o estranho zunido das minhas entranhas. Mas, tirando isso, sem medo nenhum.”
Pergunta ao Pó, John Fante
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“Que o mundo está todo ele riscado por cicatrizes. Todos têm a ambição insana de agarrar o que se move.”
(…)
As nossas sociedades, que veneram o «princípio da precaução», o «risco zero», detestam o acaso, pois ele arrasa com os nossos sonhos de controlar tudo. A literatura, ao invés, preza as cicatrizes, os vestígios do acidente, as desgraças incompreensíveis, as dores injustas.”
O Perfume das Flores à Noite, Leïla Slimani
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“E pareço circular pela nave num estado constante de distração e alheamento. Uma série de coisas de que me lembro: um sabonete na banheira, e o sabonete está rachado, e as fendas são tão fundas que se vê o interior do sabonete. O padrão fez-me estremecer e, estranhamente, enfureceu-me, porque era um padrão que não seguia nenhum principio. Formigas a subir pelo armário da cozinha e a uma garrafa de sumo concentrado. Contas que se soltaram de um colar e se espalharam pelo chão com pequenos estalidos. A mesma forma, mas repetida num padrão sem um princípio, ou que seguia um princípio que me era incompreensível. Pensava muitas vezes em partir o sabonete para me sentir melhor. Ou em arrastar um pé por entre as contas espalhadas no chão. E em esvaziar a garrafa de sumo no lava-loiça.”
Os Funcionários, Olga Ravn
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“O padrão na superfície do objeto parece tinta que foi esborratada quando ainda estava fresca. A pedra é cor de areia e tem veios pretos que se distinguem bem por contraste. Como se fossem letras impressas num jornal molhado. Que mais posso dizer para o descrever? Já o viram? É como se alguém tivesse escrito na pedra enquanto ela se estava a gerar, e como se depois, enquanto a pedra endurecia aos poucos e tomava a sua forma final, as palavras tivessem sido apagadas durante o processo, transformando-se assim num padrão na pedra brilhante. Como uma língua-sombra. Também estou marcada com palavras apagadas, palavras que deveria ter dito e cujo significado já não reconheço.”
Os Funcionários, Olga Ravn
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“Pareceu-me que a escrita devia tender para isso, para a impressão que provoca a cena do ato sexual, a angústia e o espanto, uma suspensão do juízo moral.”
Uma Paixão Simples, Annie Ernaux
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“Mas assim costumava acontecer, conforme se podia ler nos livros. A gente movimenta-se em círculos, labutava, julgando avançar, e na realidade descrevia vastas e estúpidas curvas que reconduziam ao ponto de partida, tal e qual a órbita enganosa do ano. Era assim que as pessoas se extraviavam e não encontravam o caminho.”
A Montanha Mágica, Thomas Mann