Umumbigo


A mais longa viagem em comboio do mundo
Março 26, 2016, 6:31 pm
Filed under: crónica

Nos últimos tempos houve uma imagem amplamente partilhada nas redes sociais, especialmente por entusiastas de viagens. Mostra um mapa-mundo com uma linha pintada desde Portugal até ao Vietname e diz-nos que a mais longa viagem em comboio do mundo começa em território português, mais precisamente em Lagos, e termina em Ho Chi Minh, antiga Saigão.

Segundo alguns artigos, falamos em cerca de 334 horas e doze países atravessados. E, como cereja no topo o bolo, a viagem inclui o mítico Transiberiano.

Gosto de tentar perceber o que motiva estas partilhas virais. Neste caso concreto, prova-nos que as odisseias atraem-nos. Temos curiosidade em conhecer as maiores aventuras e imaginar se algum dia poderemos concretizá-las ou se serão tão promissoras como relataram alguns corajosos.

Sobre comboios, o caso interessa-me particularmente. Sempre tive um fascínio assumido pela marcha sobre os carris, pela paisagem correndo janela fora. E sempre gostei de observar as pessoas que esperam suspensas no espaço e no tempo pelos seus destinos, lendo, conversando, dormindo ou estando só de olhos abertos.

Por isso no verão passado fiz um interrail. Cruzei-me com muitos viajantes que estavam a explorar percursos semelhantes, ávidos por conhecerem um pouco mais de mundo. Em todos encontrei algo em comum: ir de mochilas às costas é, contrariamente ao peso da bagagem, libertador.

A propósito de viagens, Gonçalo M. Tavares escreveu: “Quem quiser introduzir algo de novo no seu espaço de especialização tem que sair dele. Não há alternativa. A viagem é, neste sentido, fundamental. Quem viaja muda de ideias.”

Muitas vezes não é preciso sair do mesmo sítio para viajar, mas é incontestável que em muitos momentos o movimento liberta o pensamento. É como caminhar ou correr para aclarar ideias. Passo após passo, há qualquer coisa que se torna mais nítida, mais luminosa, mais verdadeira.

Durante o tempo do interrail, passei muitas horas em comboios. Tive sempre a sensação feliz de estar a aproximar-me de novas descobertas, acompanhando entretanto a vida que liga o ponto de partida ao ponto de chegada, e talvez por isso sorria sempre que volto a este meio de transporte. O comboio pode até levar-nos aos locais que já pisámos repetidas vezes, mas a viagem em si encerra um mundo de novos acontecimentos.

Não sei se algum dia farei a mais longa viagem em comboio do mundo, mas espero somar muitos quilómetros de carris. E de paisagens correndo fora da janela, onde me embrenharei mal chegarmos ao destino escolhido.

in Defesa de Espinho, 24 março 2016



sinal
Março 26, 2016, 4:06 pm
Filed under: poesia

Há um pormenor que salva o mundo

e ainda bem que nele reparei entre

tantos pormenores possíveis

– dizem que são incontáveis

do tamanho da nossa imaginação.

Talvez dê para nadar na imensidão

talvez mas repara como eu vim

à tona por acaso para ver

o sinal que tens ligeiramente abaixo

do canto esquerdo da boca,

precisamente aí.



coroas
Março 26, 2016, 2:56 pm
Filed under: poesia

a poesia não é difícil e quem o disse não fui eu

foi o vento tocando a polpa dos dedos

a lama, as estrelas, os degraus que descem

ao mais fundo do mar

– já há sol

 

é tempo de por coroas de flores na saudade

e dar razão ao vento.



Vulindlela
Março 26, 2016, 1:36 pm
Filed under: música



adagio
Março 25, 2016, 7:58 pm
Filed under: música | Etiquetas:



cotovia
Março 14, 2016, 8:50 pm
Filed under: citações, de ler | Etiquetas:

“Um dia, o Atticus virou-se para o Jem e disse: – Preferia que andasses aos tiros às latas no quintal, mas sei que vais andar atrás dos pássaros. Podes matar todos os gaios-azuis que encontrares, isto se lhes conseguires acertar, mas lembra-te de que é pecado matar uma cotovia.

Foi a única vez que ouvi o Atticus dizer que era pecado fazer alguma coisa e questionei Miss Maudie acerca do assunto.

– O teu pai tem razão – disse ela. – As cotovias não fazem nada a não ser cantar belas melodias para nós. Não estragam os jardins das pessoas, não fazem ninhos nos espigueiros, só sabem cantar com todo o sentimento para nós. É por isso que é pecado matar uma cotovia.”

Mataram a Cotovia, Harper Lee



rompante
Março 14, 2016, 2:13 pm
Filed under: poesia

Ando há muito tempo a tentar

lembrar-me de uma palavra

cujo significado esqueci

– esqueci as letras

e a entoação.

Duvido muito se existe

no vocabulário mortal.

 

Caminho por aí a procurá-la,

tenho a esperança maior

de sempre ter estado no bolso

fundo das calças

como um poço.

 

Nunca nos lembramos

da falta que faz uma palavra

até ficarmos incompletos

num súbito rompante.



escala
Março 7, 2016, 4:04 pm
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“Adoro aqueles homens, cada um deles, por me terem revelado as verdadeiras proporções do ser humano. Adoro o solo em que cresceram, a árvore de que brotaram, a luz em que floresceram, a bondade, a integridade, a caridade que emanavam. Puderam-me frente e frente comigo mesmo, purificaram-me do ódio, do ciúme e da inveja. E, o que tem tanta importância como tudo o resto, mostraram-me pelo seu próprio exemplo que a vida pode ser vivida magnificamente em qualquer escala, em qualquer clima, em quaisquer condições.”

O colosso de Maroussi, Henry Miller



mestria
Março 7, 2016, 3:48 pm
Filed under: citações, de ler | Etiquetas:

“A mestria de qualquer forma de expressão deveria conduzir inevitavelmente à expressão derradeira – a mestria da própria vida.”

O colosso de Maroussi, Henry Miller



O meu avô
Março 1, 2016, 10:51 pm
Filed under: crónica

O meu avô manda-me ir à luta e diz que vou ganhar. Sento-me para ouvir o discurso e
questiono se terá alguém herdado o gene que encerra o dom da palavra. Pergunto como
desenvolve conselhos assim tão certos, tão cheios de verdade, conselhos enormes que não cabem nos meus bolsos. Logo transbordam e apanho-os do chão muito depressa – são
demasiado valiosos para perder um só, feitos cristais pequeninos brilhantes do Senhor Manuel que foi criança para o Porto trabalhar. Antes abria-se os olhos e era preciso agarrar logo a vida com muita garra, muitas ganas, perscrutando o árduo caminho. As estações avançavam saltando-se dificuldades como corrida de obstáculos em que não se vê a meta mas não se pode temer a estrada. O meu avô nunca temeu e aqui chegámos com a memória de todos os nomes que tantos já esqueceram.
Hoje também é preciso agarrar a vida logo ao nascer e o amanhã não é ligeiro. Mas faz falta lembrar como cresceram os nossos avós e contar as estórias que nos são contadas sobre o passado longínquo. Há pormenores tão precisos que quase me sinto nesse tempo. Terei a mesma memória mais tarde? Espanto-me ouvindo como o meu avô sabe a matrícula do primeiro carro, as características de pessoas que com ele se cruzaram no tempo das fotografias a preto e branco, as moradas exatas, a música do baile, os diálogos de momentos decisivos que mudaram o rumo dos dias dele e, consequentemente, dos meus.
A memória é algo tão forte e simultaneamente tão frágil. Vive em equilíbrio com o esquecimento, importante em muitos aspetos para a nossa evolução. Dá sentido ao quotidiano e é a base do conhecimento enquanto processo cognitivo que constrói a nossa
identidade e projeção do mundo. Sem memória perdemos a humanidade. Por isso é gritante alimentá-la para que não se esqueçam as feições do ontem que nos trouxe até este momento. Então, ao ouvir histórias antigas, sinto necessidade de escrevê-las para que não se apaguem.
Olho para os bisnetos curiosos – a ganharem confiança nos passos, a riscarem uma folha de papel, a verem cair o primeiro dente – e penso na sorte que terão se alguém lhes souber ainda contar as derrotas e conquistas do tempo das candeias de petróleo. Não se trata de cair na armadilha saudosista ou viver assombrado pelo peso do passado que, naturalmente, é sempre uma construção de quem o conta. Trata-se de assumir essa partilha como uma pista para compreender como chegámos até aqui, abraçando uma experiência de redimensionamento. É que quando vivemos muito tempo a olhar para o nosso próprio umbigo, quase não reconhecemos o dos outros. Esquecemo-nos o quanto aprendemos observando e compreendendo outro umbigo, sempre diferente mas muito próximo do nosso.
Aprendo sempre com o meu avô. Diz-me com palavras generosas: talvez o melhor seja ir por ali, há que continuar a andar. São conselhos feitos de cristais pequeninos que se transformam num espelho muito grande e resistente ao tempo a brilhar de orgulho, sacrifício, esforço, coragem, valor. A brilhar de amor.
Obrigada, avô.