Gosto de estar em trânsito. O voo pode ser longo e a escala uma mão cheia de horas, posso até ter que mudar de transporte várias vezes. Continuarei a gostar de estar em trânsito porque a verdade é que há raros momentos em que temos esta sensação de levitar no tempo e no espaço.
O nosso único objectivo é ir e chegar ao destino. E chegar ao destino, curiosamente, tem duas dimensões muito diferentes: pode ser só uma fase prática do GPS ou pode ser uma das reflexões mais profundas.
Em trânsito, somos movimento e uma flecha determinada. Quem viaja de um ponto para outro tem uma confiança absoluta no caminho. Sabe exactamente para onde ir. Quantas mais vezes sentimos esta certeza?
Os não-lugares enchem-se e esvaziam-se ao som de passos certos. Nestes lugares de transição, desenvolvo ainda mais o olhar atento. Tenho sempre uma curiosidade extrema pelos destinos dos outros. Quero saber para onde vão e se falarão alguma língua que conheço. Se não nos compreendermos, talvez o sorriso nos possa aproximar. O traço que se esboça nos lábios e muda a fisionomia do rosto é um sinal de igualdade entre estranhos.
Poderemos até apanhar o mesmo avião e sair pela mesma porta para logo seguirmos caminhos diferentes na cidade. Quero saber quantos caminhos tem a cidade.
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o sol muito sentado
vendo nuvens
de perna cruzada
vendo a lua que faz o pino
ou onda de crista no ar
gritando alegria, alegria
aos lobos falando
das águias dançando
uma dança lenta como
areia correndo o vento
mas veloz e veloz
logo tudo queimado
no sol muito sentado
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O homem do violino vestia-se roto e tinha olhos mansos e tristes, trejeitos de rua. Na boina cor de café tilinta um sininho de latão, então olá a todos. As mãos ásperas das colheitas dos dias. E os olho melancolicamente resignados, muito cansados. A sacola do violino vai gasta, na mão direita, e o ombro segue ligeiramente descaído. Compra um bilhete de comboio para dormir num assento quente de vermelho e amarelo, imagina a paisagem que corre lá fora nos sonhos mais confortáveis de luz. Até o revisor chegar, tocar no ombro descaído para que se apresse a mostrar o bilhete imaculadamente novo, agora com o furo do visto: tudo na vida se degrada.
Porto São Bento. As pombas voam nos Aliados, o homem sobe a rua íngreme, olha os Clérigos, admira as montras de luxos que um dia terá, “um dia terei”, continua, a respiração já ofegante. Nos Leões, segue por Cedofeita, hoje irá tocar aqui onde um raio de sol aquece e alegra, agora já a queimar. A boina já lá está, quem quiser que doe generosidade. Rotineiramente, começa-se o tocar do que aprendeu de ouvir e ver o pai ensaiar, em círculos tortos de música que bate na calçada e diz bom-dia, de mansinho, a um novo acordar.
(2011)
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Vou caçar uma tempestade
Fechá-la num frasco redondo
Cultivar nela a ansiedade
De não poder partir com estrondo
Vou caçar uma tempestade
Oferecer-ta pelo amor
Abraçar-te com agilidade
Antecipando o teu sabor
Vou caçar uma tempestade
Pra revolver esses cabelos
Contrariar a ambiguidade
De admirar corpos modelos
Vou caçar uma tempestade
Quero uma das mais violentas
Que traga vento e bondade
Da ternura dos quarentas
Vou caçar uma tempestade
Desatar os nossos pés certos
Pra amar com assiduidade
E abrirmos olhos libertos
Vou caçar uma tempestade
Inverter toda a retidão
Beijar-te com habilidade
Vestir-me de furacão
Vou caçar uma tempestade
Armar-me em super-herói
Brincar com a arbitrariedade
Que da vida se constrói
Já cacei uma tempestade
Era cor de coração
E ouço-te com autenticidade
Chamar-me de campeão
(fevereiro de 2014)