Umumbigo


Em trânsito
Junho 15, 2016, 10:38 pm
Filed under: crónica, impressões

Gosto de estar em trânsito. O voo pode ser longo e a escala uma mão cheia de horas, posso até ter que mudar de transporte várias vezes. Continuarei a gostar de estar em trânsito porque a verdade é que há raros momentos em que temos esta sensação de levitar no tempo e no espaço.

O nosso único objectivo é ir e chegar ao destino. E chegar ao destino, curiosamente, tem duas dimensões muito diferentes: pode ser só uma fase prática do GPS ou pode ser uma das reflexões mais profundas.

Em trânsito, somos movimento e uma flecha determinada. Quem viaja de um ponto para outro tem uma confiança absoluta no caminho. Sabe exactamente para onde ir. Quantas mais vezes sentimos esta certeza?

Os não-lugares enchem-se e esvaziam-se ao som de passos certos. Nestes lugares de transição, desenvolvo ainda mais o olhar atento. Tenho sempre uma curiosidade extrema pelos destinos dos outros. Quero saber  para onde vão e se falarão alguma língua que conheço. Se não nos compreendermos, talvez o sorriso nos possa aproximar. O traço que se esboça nos lábios e muda a fisionomia do rosto é um sinal de igualdade entre estranhos.

Poderemos até apanhar o mesmo avião e sair pela mesma porta para logo seguirmos caminhos diferentes na cidade. Quero saber quantos caminhos tem a cidade.

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sentado
Abril 22, 2014, 6:52 pm
Filed under: impressões

o sol muito sentado

vendo nuvens

de perna cruzada

vendo a lua que faz o pino

ou onda de crista no ar

gritando alegria, alegria

aos lobos falando

das águias dançando

uma dança lenta como

areia correndo o vento

mas veloz e veloz

logo tudo queimado

no sol muito sentado



violino
Fevereiro 28, 2014, 3:15 pm
Filed under: impressões

O homem do violino vestia-se roto e tinha olhos mansos e tristes, trejeitos de rua. Na boina cor de café tilinta um sininho de latão, então olá a todos. As mãos ásperas das colheitas dos dias. E os olho melancolicamente resignados, muito cansados. A sacola do violino vai gasta, na mão direita, e o ombro segue ligeiramente descaído. Compra um bilhete de comboio para dormir num assento quente de vermelho e amarelo, imagina a paisagem que corre lá fora nos sonhos mais confortáveis de luz. Até o revisor chegar, tocar no ombro descaído para que se apresse a mostrar o bilhete imaculadamente novo, agora com o furo do visto: tudo na vida se degrada.

Porto São Bento. As pombas voam nos Aliados, o homem sobe a rua íngreme, olha os Clérigos, admira as montras de luxos que um dia terá, “um dia terei”, continua, a respiração já ofegante. Nos Leões, segue por Cedofeita, hoje irá tocar aqui onde um raio de sol aquece e alegra, agora já a queimar. A boina já lá está, quem quiser que doe generosidade. Rotineiramente, começa-se o tocar do que aprendeu de ouvir e ver o pai ensaiar, em círculos tortos de música que bate na calçada e diz bom-dia, de mansinho, a um novo acordar.

(2011)



Caça-tempestades
Fevereiro 19, 2014, 10:32 pm
Filed under: impressões

Vou caçar uma tempestade

Fechá-la num frasco redondo

Cultivar nela a ansiedade

De não poder partir com estrondo

 

Vou caçar uma tempestade

Oferecer-ta pelo amor

Abraçar-te com agilidade

Antecipando o teu sabor

 

Vou caçar uma tempestade

Pra revolver esses cabelos

Contrariar a ambiguidade

De admirar corpos modelos

 

Vou caçar uma tempestade

Quero uma das mais violentas

Que traga vento e bondade

Da ternura dos quarentas

 

Vou caçar uma tempestade

Desatar os nossos pés certos

Pra amar com assiduidade

E abrirmos olhos libertos

 

Vou caçar uma tempestade

Inverter toda a retidão

Beijar-te com habilidade

Vestir-me de furacão

 

Vou caçar uma tempestade

Armar-me em super-herói

Brincar com a arbitrariedade

Que da vida se constrói

 

Já cacei uma tempestade

Era cor de coração

E ouço-te com autenticidade

Chamar-me de campeão

 

(fevereiro de 2014)