Filed under: poesia
porque amanhã é leve
falarei das flores nascidas e abertas
cortarei a incerteza às rodelas
saltarei fronteiras com espingardas
aos tiros de amor
porque amanhã é simples
cantarei as flores nascidas e abertas
comerei a incerteza às rodelas
romperei fronteiras com espingardas
aos tiros de amor
porque amanhã troco o verbo
faço pontaria
e silêncio
é dia de me disparar.
Filed under: poesia
Este poema é visceral
tem ossos e dentes
carne e cabelos
tem frio, tem sede
cócegas, orgulho
e sente desejo,
este poema consome-se
inteiro até ao fim da noite
porque acorda com sono,
sabe-se menor ou maior
mediante a luz
e a fome,
onde fica a poesia
quanto temos corpo.
Filed under: poesia
Não sangram as formigas e eu sangro.
Fui abrir e fechar portas com força
muitas rangeram mas não sangraram
como as formigas depois há os gatos
que se apaixonaram e ninguém os pôde parar.
Vi um magoado na berma da estrada
quando conduzia e a partir dali não saí do sítio
apesar de ver novas placas fiquei junto ao gato
em quilómetro desconhecido
mas não se apaixonam as formigas?
Tiro a ferrugem dos olhos para vê-las melhor:
se esmago uma é um ponto preto.
Li algures que nem todo o sangue é vermelho
e como seriam as mulheres se fosse azul celeste
a menstruação.
A formiga esmagada ainda mexe uma antena
juro que parece ter pena de mim
de mim que não salvei o gato
e o meu sangue é da mesma cor.
Filed under: poesia
é o 131º dia do ano no calendário gregoriano
132º em anos bisextos
faltam 234 dias para acabar o ano
e o que interessa isso se 11 de maio
é dia de nascer a Joana
que vi de fraldas dando pequeninos passos
que vi da carteira da escola usar canetas coloridas
que vi com o primeiro risco preto nos olhos
que vi com a cartola de finalista feita engenheira
que vejo a todo o momento porque fundamental
é partilharmos o quotidiano aos sonhos
coisas contadas no passadiço de areia e liberdade
onde lembramos as férias desportivas pedalando por aí
ou quando dançámos num barco pirata no báltico
ou quando levámos tanta comida para uma ilha
e digo com certeza que uma parte enorme de mim
descobri-a contigo, amiga fundamental
desde que me lembro de mim
desde esta primeira aceleração da viagem
que passa na 25º estação de aventura e curiosidade.
Se há maior sorte que podermos crescer
juntas em tamanho e laços?
Há a sorte de hoje estar muito sol
e ser dia de brindar a ti e à sorte
que nos cruzou as vidas para toda a vida.
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“Não há nada mais atraente, em minha opinião, do que andar no encalço das próprias ideias, tal como o caçador persegue a caça, sem procurar manter um determinado percurso. Além disso, quando viajo no meu quarto, raramente percorro uma linha recta: vou da mesa até um quadro que está colocado a um canto, daí parto em diagonal até à porta; mas ainda que, ao partir, a minha intenção seja a de me dirigir para lá, se encontro a poltrona no caminho não estou com cerimónias e instalo-me de imediato nela.”
Viagem à volta do meu quarto, Xavier de Maistre
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Quem tem a mãe no mundo
– porque em cada umbigo está sempre,
no coração, quem sabe se na forma de olharmos
todas as coisas visíveis e invisíveis –
quem tem a mãe no mundo
tem o mundo mais quente
com colo e a certeza
de estar ali quem nos pôs no mundo pequeninos
no dia do primeiro grito, primeiro choro
e em todos os dias a seguir
todos sem exceção absoluta
e se somos da idade da nossa mãe quando nascemos
sabemos que continuamos pequeninos
perante as mães enormes
e tu, mãe
tens o tamanho da felicidade
do riso
da ousadia
da luz intensa
beleza imensa que me diz todos os dias
amo-te
com a leveza do olá, do bom dia
leveza sem fundo onde cabe essa forma de vida
de amar alguém mais e primeiro do que nós.
Filed under: de ler
“Todos descobrem, mais tarde ou mais cedo na vida, que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos se detêm a pensar na consideração oposta: que também uma infelicidade perfeita é, igualmente, não realizável. Os momentos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza: derivam da nossa condição humana, que é inimiga de tudo o que é infinito. Opõe-se-lhe o nosso sempre insuficiente conhecimento do futuro; e a isto se chama, num caso, esperança; no outro, incerteza do amanhã. Opõe-se-lhe a certeza da morte, que impõem um limite a qualquer alegria, mas também a qualquer dor. Opõem-se-lhe as inevitáveis preocupações materiais que, assim como poluem qualquer felicidade duradoura, também distraem assiduamente a nossa atenção da desgraça que paira sobre nós, e tornam fragmentária e, por isso mesmo, suportável, a consciência dela.”
Se Isto É Um Homem, Primo Levi