Umumbigo


Flor do Gás
Fevereiro 16, 2014, 1:17 am
Filed under: reportagem

Porto e Gaia cumprimentam-se. Plantadas em cada margem, as cidades lutam contra a chuva que fustiga a terra e o rio. Há gaivotas e tainhas nas águas marginais. E há a história do gato Bonito, apanhado no rio há nove anos por Maria de Lurdes. Um gato grande e muito branco que passeia ao seu redor. Afinal, não casou nem teve filhos, chegou-lhe “criar os 11 irmãos.” Vendeu “manjericos, sardinha assada e caldo verde, meias, caranguejo cozido, calcinhas de senhora.” Agora tenta vender cafés, dois a três por dia, algumas cervejas e travessias no Douro. “A minha vida dava um romance”, ri-se.

A bandeira de Portugal já se vê, vinda de Gaia. Esvoaça a bordo do Flor do Gás, pronto a atracar na margem do Porto. José Dias, 45 anos, é o único que atreve a entrada e compra o bilhete de um euro, preço que se mantém há perto de dez anos. “Desde novito” que o faz, explica. “A minha mãe diz que este barco tem mais de 50 anos”, continua. E tem. Em frente ao Largo do Ouro, antes de chegar ao Fluvial, vê-se o ponto de partida e de chegada do barco que cruza o rio Douro desde o século passado. É um barco onde se lêem as estórias marcadas na madeira do leme. Nas bóias vermelhas, a bordo, ainda se escreve Flor do Gaz.

Em mais de 50 anos, a paisagem mudou drasticamente. A Ponte da Arrábida modernizou-se, os silos da antiga cimenteira desapareceram e ergue-se agora um edifício em construção. Os carros passam rápidos, quase miniaturas que correm na ponte, contra o vagar da embarcação. E o negócio já não é o que era: “nem para o gasóleo dá”, comenta o condutor do Flor do Gás, Jeremias, de 71 anos. Recorda prontamente os dias de pescador e, pensativo, conclui que não gosta de conduzir o barco. “É ingrato.” Num dia cinzento e chuvoso, conta que tudo “vai melhor” no verão. Atravessa o rio apenas há uns meses, mas as estatísticas estão bem sabidas. De manhã, 26 pessoas fizeram a viagem. De tarde, só se forem umas vinte, prevê. “Para esses é que é uma vida, é de inverno e tudo”, atira Jeremias, apontando para o cruzeiro turístico que passa e faz balançar a Flor do Gás. “É espanhóis, é franceses, é uma festa.” O esquema do Flor é então revelado. “Não se pode andar lá e cá com a lancha vazia.” Já na margem de Gaia, Jeremias diz que só atravessa se estiver gente. “A D. Maria dá-me um toque se estiver alguém do lado do Porto.”

Mestre e amarrador contemplam o cruzeiro, as bandeirinhas, os turistas que trazem máquinas fotográficas de último grito ao peito.

Aos quartos e às meias horas

Se já passaram muitos condutores pelo Flor? “Milhões!”, ri-se o ajudante e amarrador, Manuel Lopes, entre duas passas. “Se calhar alguns já morreram, só o Cabaça já foi há 20 anos, o Zé Pedro para aí há dez, não foi?”, interrogam-se. Os dois, da Afurada, contam que pouco ganham para o tabaco. “São dois maços por dia, uns cafés e já está”, diz Manuel. Jeremias mostra o cigarro electrónico que lhe ofereceram. “Carreguei isto esta noite”, diz para o amarrador. Não sabe onde poderá comprar novas cargas e o outro, adepto do cigarro que se extingue, ri-se da modernidade.

Numa nuvem de fumo e contra o barulho forte do motor, explicam a rotina do Flor de Gás. Das 6h00 às 21h30, “aqui sai aos quartos (Porto) e de Gaia é às meias.” Às 19h, há a troca: passa a sair do Porto às meia horas. Mas as Câmaras de um lado e outro deviam ajudar, frisam. “Está mau, isto.” E repetem: “isto está mau para ela.”

Voltamos a ela, Maria de Lurdes Gomes da Silva, 74 anos no BI (75 na realidade). “A minha mãe roubou-me à idade e, para não pagar multa de atraso, registou-a um ano depois.” No café Ponto de Encontro, um pré-fabricado de madeira na margem do Porto com 17 anos, cinco homens jogam às cartas em silêncio. Corta-se a solenidade do momento para perguntar qual é o naipe do trunfo.

“Construí isto para ajudar o negócio, a Flor do Gás e a Flor do Douro”, explica Maria. Fala das cheias que vão “até aqui”, aponta para a banca, a um metro do chão. Há uma frescura viva em cada ruga que carrega. “Mas sabe quem é que gosta muito disto?” “É o cantor, o Abrunhosa”, diz num sussurro. “Gosta muito de vir cá atravessar o rio.”

No Porto, comprova-se a rotina que Jeremias tinha revelado. “Tenho que avisar que está aí uma senhora, onde é que está o telemóvel?” Marca, atenta e pausadamente, o número que tem escrito num papel, colado na parede. Podia guardá-lo na memória do telemóvel, mas o ritual de ler o número e marcá-lo repete-se diariamente. “Deve ser isto, acho que não troquei nada.” O Bonito chama constantemente a atenção, levantando a pata e espetando uma unha na lã do casaco de malha de Maria.

A primeira empresa a atravessar o Douro

Quanto à Flor, está na sua mão há quase 40 anos, a cortar águas de sol a sol. E com licença vitalícia. Antes dela, apenas pertenceu a uma sociedade. “Foi a primeira empresa a atravessar e trabalhar no Douro, primeiro num barquinho a remos”, conta, orgulhosa. Depois veio a lancha, sempre cheia. “Havia gente que vinha da fábrica do sabão, da conserva, do alumínio, dos fósforos, agora fecharam tudo.” Já não passa ninguém.

Mostra o pequeno altar que construiu e reafirma a “muita fé em Deus”. Dorme no café improvisado. Tem casa na Afurada, mas precisa de ser arranjada, está sem tecto. “Durmo aqui com uns edredões no chão.” E conta uma noite que a marcou. Bateram na portada de madeira “muito tarde”, foi ver quem era. Um homem muito velho, de barbas muito grandes, muito brancas. Disse que vinha de uma longa viagem e pediu algo para comer. “Só tinha umas sandes e queria dar-lhe um prato quente.” Apresentou a sande de chouriço e propôs servir um copo de vinho. “Vinho não, prefiro água.” Água também não pode ser, pensou, e deu-lhe um copo de sumo. “Depois disto, nunca mais o vi, nunca mais. O que é que pensa disto?” Um vizinho disse-lhe que seria um profeta. “E eu acredito.”

Acredita, também, em melhorias no negócio, “talvez quando abrirem a marina”. Afinal, sorri, “isto não pode continuar assim. “Maria, há cerveja?”, pergunta-se. “E um copo de tinto maduro.”

“São pessoas reformadas que vêm para aqui, isto é chato”, continua a desenrolar o novelo da sua história. Explica que, às vezes, não se quer esperar na margem, “vem tudo cheio de pressa.” As pessoas são “ingratas, falam mal com o condutor.” Percebemos o que Jeremias dizia.

Mostra os papéis onde aponta o lucro do barco: 14 euros num dia, 20 noutro, 18 euros. Também mostra os bloquinhos de dez viagens, a 80 cêntimos cada, que se empilham na mesa. “O que tem segurado isto é o verão, uma festita.” Defende que “as coisas têm que ser certas e provadas” e insiste em mostrar o papel onde mostra o negócio do ouro que empenhou. “A vida dá trambolhões.” Diz que remodelou o barco sozinha, sem ajuda. “Fazem obras em todo o lado, menos aqui, parece que só se ajuda os ricos e não se ajuda os pobres.” Conta, até, que fizeram uma revista com as 50 melhores coisas da cidade do Porto. “O Flor vinha lá. Mas ajudar? Ninguém.” Lamenta que haja até quem tente prejudicar a empresa. Uma vez meteram areia no motor e o barco deixou de trabalhar, “ficou aí parado quatro meses, tive que pedir para pagar aos empregados”, confessa. E conclui, pensativa: “Para quê tanta corrupção e maldade? Vimos para cá fazer uma missão, fechamos os olhos e já lá vamos.”

O que já lá vai, também, é o Flor do Gás, chegando à outra margem, em voltas que se repetem aos quartos e às meias horas.

(maio de 2011)