Umumbigo


gritar
Maio 10, 2014, 3:58 pm
Filed under: nostalgias

CLXIII

De noite começou a gritar no quintal. Num dia sem dormir, como muitos outros, arrastou-se até fora de casa para sentir o ar, e de repente vê-se berrar. Os vizinhos assustaram-se e logo viraram-se para o outro lado para prosseguir o novelo do sono. Violeta sentiu-se melhor e adormeceu num pestanejar depois de regressar à cama, vendo Luís olhá-la com ar de interrogação: gritaste? caíste? sim. magoaste-te? não, dorme, dorme, vamos dormir.
No dia seguinte e de novo sem sono, veio pé ante pé até ao quintal. De novo, o grito. De novo, o alívio. Olhando as petúnias entre cebolas e agriões, rodou nos calcanhares descalços e de novo a cama, branca, e também uma marca pequena de terra nos lençóis. Luís não acordou, até amanhã.
Amanhã é hoje e Violeta não precisa de ficar muito tempo acordada até decidir a visita ao quintal, o grito alto, admirar como crescem os melões e melancias, e logo saltitar até ao quarto para dormir profundamente.
Uma semana depois, a vizinha bate à porta para falar com Luís e perguntar se tudo vai bem por ali. São os gritos que a preocupam? É Violeta, é uma terapia, fica melhor assim, peço a vossa paciência. A vizinha sai de mansinho, indo queixar-se a todos da desgraça de ter uma doida a viver ao lado que todos os dias vem mandar um berro valente cá para fora. E os cães que depois não se calam, coitadinhos se pensam que um ladrão mata alguém, querem avisar-nos, é uma consumição. Onde é que já se viu.
E Violeta já dorme sem acordar. Levanta-se mesmo a dormir para o grito noturno onde o ar é libertador e o silêncio frágil, quebrado como loiça de porcelana que racha mal toca no chão. Regressa sem cair nem se magoar à cama quente, onde Luís já não está.